"Desenha com os dedos palavras, mistura-lhe o sentimento, sofre-lhe o calor das frases... e serás poeta.
Derrama o sangue nas folhas brancas, respira-lhe a beleza dos traços... bebe a doces sorvos as canções das musas do Tejo, e ouvirás Camões ao longe... mostrar-te-á o que é sentir-se perdido nos mares da memória recôndita das palavras... ouve-o.
Chora! Deixa as tuas lágrimas caírem sobre a pena de metal, e terás vida... deita as tuas palavras, mostra o que é saber viver em parágrafos. Mostra o que levas dentro, deixa-te existir.
Lembra-te do mar salgado, e das lágrimas de Portugal, e terás Pessoa ao teu lado para te ensinar que escrever é também viver... para te abrir as páginas de seu livro, e te mostrar que morrer não é partir... é deixar ficar.
Sentes a Terra? Consegues ouvi-la cantar? Então deixa que ela te sussurre as suas breves palavras, e terás Torga para te contar, que saber ouvir é poder contar... ouve-a... olha como ela te abençoa!
Fecha os olhos. Sentes a escuridão? Não a temas... toca-lhe. Ela mostrar-te-á que estar sozinho é poder amar... amar em silêncio. Ela ensina-te! Ela conhece a solidão. Não tenhas remorsos.
Tem atenção... consegues sentir o cheiro das paredes caiadas de branco? Então abre bem os olhos, e repara no aviso de Sophia: a brancura das paredes é o disfarce da podridão oculta... mas ouve também o mar... Então de certo percebes que a sua imensidão é pura sabedoria... ouve as ondas romper... e tuas mãos desenharão em traços perfeitos a inteligência dos sentimentos...
Alguma vez sofreste? Então deixa-se morrer, apenas um instante, um mísero instante, e conhecerás Florbela... ela vai mostrar-te que sentir amor, não é apenas sorrir. Sentir amor, é abrir um livro, marca-lo com tua vida, gravar-lhe tuas palavras, é saberes ser alma e sangue.
Há gritos abafados ao longe... persegue-os... ouve-os... quem chora também sente... também quer sorrir... consegues sorrir? Então usa palavras, usa-as e mostra-te... deixa-te conhecer.
As crianças brincam ao longe, e Eugénio conta-te uma história... contou-te uma história, em verso, e mostrou-te que a inocência é o desfecho da vida, é o calor da ilusão... pergunta-lhe, e deixa que ele te mostre, que ser-se poeta, é ser-se vida.
Agarra as folhas, elas voam até ti, e as tuas palavras, essas tuas companheiras, fluirão em leves partituras desgarradas de comunhão e harmonia.
Lembraste deles? De três homens tão diferentes e tão iguais? Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis... lembras-te? Viveram, amaram, sofreram, choraram, mas deixaram-te uma coisa... um legado espiritual... ser-se poeta, é saber-se vida, terra e paixão! Efusão explosiva de sentimentos desgarrados e consumados. Eles mostram-te!
Sentes agora? Olha como elas sorriem quando as tornas memoráveis... são as tuas palavras... tuas. É o teu mundo, são os teus olhos... ou então olha para Régio, que num aperto de mão agora sempre lembrado, e numa carta a um amigo, mostrou que ser-se poeta, é ser-se capaz de fazer vibrar o coração de quem há muito não sente e acender os olhos de quem há muito não quer ver.
É ser-se poeta, homem, tesouro, universo mostrado... é abrir um cofre, tirar-lhe as entranhas, e de lá o ouro... o teu ouro... as tuas palavras, a tua memória, a tua paixão por existir... o teu amor, por escrever."
César Silvestre – In “Metropolitano” - 2002